Saturday, May 19, 2012

Não, a minha pátria NÃO é a língua portuguesa


Repete-se até à exaustão uma banalidade de Pessoa, que por ser Pessoa não pode ser discutida. É uma banalidade perigosa que se transformou em certeza, em mandamento intemporal e se impôs ao comportamento do Estado como uma obrigação. Não, a minha pátria não é a língua portuguesa. Por essa quimera estamos há trinta e tal anos a esbanjar meios no ensino da língua portuguesa onde esta já é língua oficial - Guiné, S. Tomé, Moçambique - e noutras paragens onde os leitorados de português deviam ser investimento do Brasil e não de Portugal: Venezuela, Argentina, Chile, Uruguai. Por essa quimera, que parece só servir para dar empregos a professoras do ensino secundário, não se tem passado - na Ásia, em África e na Europa - dos umbrais do minimum minimorum destinado a formar guias turísticos, empregados de mesa e telefonistas de embaixadas. Não é responsabilidade do Estado português ensinar português a quem quer que seja. Quanto muito, cumpriria ao Instituto Camões estabelecer parcerias com universidades estrangeiras, facultar-lhes meios iniciais programáticos, metodológicos e de professores até que se criassem raízes. Os melhores centros de ensino de língua portuguesa na Ásia não dependem de Portugal: são autónomos, animados e dirigidos por professores locais e batem largamente em condições técnicas, tecnológicas e visibilidade académica os nossos leitorados. O Japão e a Coreia do Sul têm departamentos de língua portuguesa cheios de vitalidade e não pedem a Portugal o favor de uma bula de confirmação.


Se, em vez de insistir na gramática e nas primeiras letras, se desse prioridade à conquista das universidades, preparando-se cursos de cultura portuguesa destinados a servir as necessidades da investigação local, facultando conceitos, informação precisa sobre história portuguesa, traduzindo e publicando os imensos e quase inacessíveis fundos documentais portugueses, a língua, instrumento de comunicação, surgiria como manifestação do entusiasmo gerado pela curiosidade intelectual dos novos lusófilos. Ao contrário, não dá ! Até ao presente, não deu e só se tem insistido nesse erro porque há interesses em campo: ordenados, linhas de amiguismo, certificações, cargos. É um lóbi, e um lóbi inútil que desperdiça os recursos públicos e impede o inevitável, ou seja, a co-responsabilização luso-brasileira numa política global de difusão dos nossos comuns interesses geo-linguísticos. O Instituto Camões não devia ser coisa portuguesa. Devia ser instrumento de parceria luso-brasileira, irrigado por fundos dos dois países e servir para formar competências, certificá-las e favorecer a instalação de quadros médios nas empresas que lidam com o espaço lusófono ou, ainda, favorecer a instalação de companhias portuguesas (sobretudo brasileiras) num tempo marcado pela emergência do Brasil como potência económica mundial. O inútil cruzadismo pela língua não resultou. Ou o Brasil se interessa pelo investimento a fundo perdido ou não se deve prosseguir num caminho que se revelou, senão inútil, quase insignificante nos resultados.


Felizmente, a língua portuguesa não é coisa em vias de desaparição, como o são a francesa e a italiana. Há duzentos milhões de pessoas que a utilizam diariamente, há estados que a ela recorreram para não desaparecerem, pelo que em Angola, Moçambique e Cabo-Verde o Camões devia mudar de rumo e deixar a responsabilidade do ensino da língua aos ministérios da educação dos respectivos países. Outro erro, coisa tremenda, tão em voga para a linguística como os estudos do "género" para tudo o mais - há género em tudo - tem sido a chamada "crioulística". Não interessa a Portugal partir, quebrar a unidade da língua, fazer concessões ao exótico e a corruções, mas é o que se tem feito em nome de um complexo de ex-colonizador. Quem quer aprender o português exige que lhe ensinem a língua viva. Essa de querer retirar do sepulcro variantes do português já quase extintas, supondo que os descendentes de portugueses as irão ressuscitar, com elas reforçando a "identidade" (outro palavrão em voga) é um rematado disparate. Vão dizer aqueles que não gostam de pensar: "lá está ele a exagerar". Não, meus amigos, não é exagero, é o que é. Nisso, como noutras coisas, sou muito carré: o que deu esse ensino do português ? quantos escritores, quantos trabalhos académicos publicados, quantos amigos conseguiu Portugal em trinta anos de dinheiro investido nesse terreno infecundo ?
Uma última observação que poderá ter o curso de provocação. Um só padre português nas paróquias de Banguecoque, Singapura, Malaca e Flores teria impacto maior que vinte "leitores" de português. Sabem porquê ? Bem, porque os católicos tailandeses, de Singapura, da Indonésia e da Malásia são "portugueses" mas não estão interessados na língua portuguesa. Amam Portugal porque a nossa religião é a "religião dos portugueses", ou seja, a sua, deles. Infelizmente, a Igreja portuguesa já não quer saber da missionação para nada. Está gorda e bem encostada ao pequeno quotidiano do viver sem desafio.
Não, não se trata de assunto de pessoas. Aqui, como sabem, não há ataques pessoais nem se cultiva o estilo ad hominem. Trata-se de um problema de conceitos. O Instituto Camões já teve - e tem - a dirigi-lo servidores do Estado que às suas tarefas se entregam com a maior dedicação e entusiasmo. Trata-se de um problema em não pode nem deve ter "culpados". Nos termos e opções em que vive, dar ao Camões relevância é tão improvável como conceber um navio feito em granito. Qualquer que seja o gabarito do timoneiro, o destino à vista é um afundamento.