Saturday, May 19, 2012

Não me falem em cultura


A cultura e a tradição justificaram o seppuku, a excisão (vulgo mutilação genital feminina), a lapidação de adúlteras, o talhar de membros e narizes de pequenos ratoneiros, o ferro caldo para apóstatas, os suplícios públicos, a tortura, as fogueiras e em seu nome se levantaram as mais iracundas vozes da conservação quando se tratou de justificar a escravatura. A civilização, essa bate-se por causas nobres: a despenalização das drogas, o infanticídio até às não sei quantas semanas, a bondade da guilhotina e da cadeira eléctrica, as guerras libertadoras e até a bomba atómica lançada sobre duas cidades japonesas. Não há diferença senão no modo: são biombos de hipocrisia e aquietadoras da cobardia irresponsável.

Anteontem, um touro teve a brilhante ideia de fazer justiça pelos próprios cornos. Os homens da cultura dirão que a tourada é milenária, que a tensão entre o homem e o animal atinge culminâncias e que o sangue derramado é gota no oceano da carnificina muda que nos chega ao prato do bife, da galinha à fricassé ou da lagosta cozida viva. Por mais que queira compreender o argumento, o pouco de civilizado que tenho impede-me de aceitar que uma tradição, só por ser tradição, tenha vantagem sobre a repulsiva brincadeira envolvendo centos de espectadores inebriados com o sofrimento de um animal. Entre a tourada e as lutas de gladiadores, optaria pela arena do Circo Máximo. Aquele senhor Touro valeu uma tese de antropologia animal.