Saturday, May 19, 2012

Nós, pied-noirs


O Paul, africano como eu, tem sido das poucas amizades europeias perduráveis que fiz na Ásia. Vinte e poucos anos mais velho do que eu, nasceu na Argélia e pela Argélia pegou em armas para defender o direito de permanecer na terra que amava e era a sua pátria. Traído pela França, como gosta de frisar, sobretudo por esse enigma camaleónico, mitificado e intocável que é De Gaulle, percorreu o mundo e a sua vida é uma aventura. Ao abandonar a sua Argélia, ele que lutara pela França, recebeu o prémio de um mandado de captura emitido pelas autoridades de Paris. Foi para Espanha e daí para Portugal, o único país que lhe deu acolhimento, pelo que tem por nós uma grande simpatia. É, à sua maneira, um lusófilo.

Depois, foi professor universitário no Senegal e Madagáscar, esteve na República Centro-Africana e no Zaire, conhece como ninguém o que resta da velha Indochina Francesa e vive entregue à leitura. Já não há homens assim. Alia uma grande cultura histórica, literária e teológica [católica mas não cristã, como gosta de dizer, pois cristão transformou-se em sinónimo de parvoíce americana] a dotes de grande conversador. Dos ocidentais que conheço, foi dos únicos que ousou sair às ruas durante os combates de Maio e fez reportagem, ouviu os intervenientes, riu-se do corta-cola dos enviados das agências ocidentais e partilha comigo a convicção de que a Tailândia esteve a milímetros do abismo. Como se recusa aprender "essa língua de piratas e mercadores que é o inglês", aprendeu Thai para comunicar com os thais. Vive entre thais sem cair no ridículo de querer ser thai, pelo que o seu ocidentalismo é, sem tirar, igual ao meu. Ah, esquecia-me, fala e escreve árabe !

É um "direitista" como eu, ou seja, não é racista, não é euro-cêntrico, não acredita em estórias da carochinha nem no romantismo dos recitativos grandiosos e ocos com que se entretém a direita tribalista. Tem a grande qualidade de dizer em poucas palavras aquilo que é essencial, tocando no cerne sem se perder em fogos de artifício. Um dia, sem hesitações, definiu a França como um país de "regicidas" e disse, perante o estupor de ouvintes sem grande preparação política que "a democracia são 60 anos da história europeia, ou seja, quase nada". É um monárquico estético e não acredita, decididamente, no universo de plástico e nas superstições em que vivem emparedados dos farang aqui estabelecidos. No Paul encontrei um outro africano branco, apanhado no fogo cruzado e réu involuntário no tribunal da história que juntou vítimas e assassinos, leais combatentes e desertores, patriotas e derrotistas.

Estou absolutamente convencido que a Argélia, como o meu Moçambique, perderam ao deixar-nos sair. Agora que se aproxima mais um "7 de Setembro", vejo que a ingrata História nos deu razão. Nós éramos o grão de sal que se perdeu na sopa da independência.



L' Hymne des Français d' Algérie – Jean Paul Gavino