Saturday, May 19, 2012

Coisas terríveis que acontecem no país dos brandos costumes


Encontrando-me em Lisboa a redigir o trabalho que há três anos me propus fazer (as relações entre Portugal e o Sião no período Banguecoque), tenho percorrido os arquivos e bibliotecas da nossa capital para completar investigação em áreas para as quais não possuía ainda massa documental expressiva. Ora, numa das minhas deambulações, passei ali pela Calçada da Tapada, à Ajuda, onde se encontra a antiga Escola Preparatória Francisco de Arruda. Ai estudei no terrível ano de 1974-75. Acabara de chegar de África sem eira e vivia opulentamente com os meus pais e irmãos numa roulloute desse luxuoso resort que dá pelo nome de Parque de Campismo de Monsanto. Era o tempo do ódio à solta, dos "inimigos de classe", das "lutas" e das "punições exemplares", da "justiça popular" [executada por burgueses], de pinchagens, palavras de ordem, comícios, reuniões gerais, "saneamentos com justa causa". Foi um ano alucinante de humilhações e desprezo por nós, "exploradores de africanos"e inimigos do povo. Lembro-me do frio terrível desse inverno, da humidade que doía até aos ossos, da falta de roupa e comida. Sim, importa lembrar tudo isso, pois foi tudo isso que me fez duvidar pela primeira vez da bondade dos homens, dos tonitruantes princípios, dos romantismos revolucionários e demais mentiras de que todas as revoluções dizem representar.

Ao chegar àquela escola, apercebi-me que destoava das outras. Era grande, bem mobilada, confortável até, com as suas salas de aula com aquecimento, laboratórios, oficinas, ginásios, bibliotecas, antiteatros e cantinas verdadeiramente modelares no panorama português. Fora, durante quase duas décadas, um laboratório de metodologia e pedagogia inovadoras e o seu criador, Manuel Calvet de Magalhães, implantara no meio de um bairro popular e operário uma nesga da Suécia. Ali fizera milagres, formando e incutindo nos miúdos de 10 e 11 anos o amor pelas artes, pelo teatro e pelo cinema. A escola possuía uma sala de cinema e tinha um vasto catálogo de filmes formativos e documentários sobre o mundo animal, o meio ambiente, física e química, matemáticas, ciências sociais e história. Uma vez por semana, os alunos eram encaminhados pelos professores para essa sala e assistiam a dois ou três documentários, posto que pedia-se-lhes fizessem redacções sobre aquilo a que haviam assistido. Era uma das preocupações de Calvet de Magalhães: dar voz às crianças, obrigá-las a tomar posição crítica em relação ao mundo, despertar-lhes a curiosidade intelectual. Depois, era também uma escola que tinha aulas de xadrez, música, modelagem e até trabalhos oficinais que facultavam os rudimentos práticos de tudo quanto um homem deve saber fazer: consertar uma tomada, reparar um rádio, coser um botão, encadernar um livro. À entrada da escola, esculpida na pedra eterna, uma citação de Salazar: "a violência é o argumento do incompetente".

Calvet de Magalhães era salazarista, pois claro, mas um desses salazaristas muito próximos de uma certa social-democracia, como lembrou Renzo De Felice. Acreditava na desigualdade pelo mérito, no aprimoramento pelo trabalho, pela inteligência e pelo estudo, conciliava a ordem com o progresso e estava absolutamente convencido que os indivíduos devem ser guiados à luz. Foi o maior erro do pedagogo, pois os comunistas, então em frenesim de destruição de tudo quanto se lhes pudesse opor resistência, buscavam inimigos inteligentes e não idiotas ultra-conservadores. Calvet não era um desses cinzentões insignificantes que faziam as delícias do imaginário das caricaturas de Abel Manta. Era culto, dono de vontade indomável, um mouro de trabalho, dotado de grande capacidade de realização e liderança. Era, em suma, o pior inimigo do totalitarismo comunista. Pior ainda, era de um patriotismo exaltante e por toda a escola se cruzavam alusões ao passado (aos cientistas e escritores) e se afirmava um optimismo contagiante em relação ao futuro.

Em 1974, uma turbamulta de miseráveis - alguns dos quais haviam sido alimentados à mão pelo pedagogo - instaurou a revolução na Francisco Arruda. Os abaixo-assinados, as reuniões de crítica, a denúncia de colegas, a limpeza das bibliotecas de tudo quanto lembrasse "literatura reaccionária", as pressões, os jornais de parede precederam o terror. Dizia-se que Calvet era da União Nacional, que fora "denunciante da PIDE", que era monárquico, "anti-comunista primário". É claro que o homem nunca fizera política, não tinha lóbi nem funcionava em rede. Era, apenas, um grande profissional da educação e tudo isso deixara de ter valor no Portugal que resvalava para a tirania da rua e do mais desavergonhado trepadorismo, pois nos processos revolucionários surgem sempre os mais impulsivos tarados em busca de sucesso que nunca alcançariam em períodos de normalidade. Havia que matar o inimigo e a partir de Maio de 74, a célula PC iniciou a diabolização do desgraçado. Impediram-no de entrar no seu gabinete da direcção, devassaram-lhe os documentos, cortaram-lhe o telefone, impediram-no de percorrer os corredores da escola que criara, enviaram-lhe centos de cartas anónimas com as mais soezes insinuações e ameaças.Isolado, sob pressão do terror psicológico e da violência física, o mundo de Calvet desagregou-se. Fechou-se na casa de banho, deitou-se na banheira e matou-se. É este o mais acabado testemunho da mentira dessa tal "revolução sem derramemento de sangue".