Saturday, May 19, 2012

Barrela patriótica


O patriotismo não é ideologia nem doutrina; é um sentimento sem o qual a sociedade, as instituições e o Estado carecem de significado. Tão habituados às "desconstruções" dos camartelos do marxismo - que tudo reduziu a "alienações" e interesses de classe - e do mais prosaico capitalismo - que procedeu à dedução do sentido da vida colectiva pelo "bem-estar" e consumo - espantamo-nos perante a natural intervenção do Estado no fomento do patriotismo. Sim, a verdade - ericem-se os "jovens da geração de 68", que andaram décadas a apedrejar os símbolos nacionais - é que sem patriotismo não há nem civismo nem cidadania. Percorri os bancos do liceu e da universidade recebendo verdadeiras barrelas de anti-portuguesismo. Hoje, o patriotismo português está confinado ao esférico e os governantes não sabem como recuperar a unidade, pois o patriotismo é como uma liturgia: se não se celebrar diariamente, se não for permanentemente regado e inculcado, desaparece. E o que fica do irreparável vazio desse poderoso elemento agregador ? Governantes sem autoridade, o Estado sem finalidade, cidadãos de coisa alguma. O patriotismo não é de esquerda nem de direita: é nacional.



Tocou o telefone e um amigo meu, que trabalha para o governo tailandês, convidava-me para a inauguração de uma exposição que marca o início de um vasto ciclo de iniciativas que em boa hora o governo desencadeou para exaltar os símbolos nacionais. Vesti-me à pressa e à hora combinada cheguei ao local do arranque da campanha. O vice primeiro-ministro acabara de chegar e uma multidão de jornalistas disparava girândulas de flashes. Simples, com a grandeza de tudo quanto dispensa apresentações, deu-se início à sessão. Uma procissão das bandeiras nacionais da Tailândia empunhadas por jovens das escolas secundárias da capital, desfilou com solenidade exibindo o friso das bandeiras deste reino, dos tempos de Sukhothai e Ayutthaya à presente era de Banguecoque. Marchas patrióticas, cantadas por uma rapariga de vibrante voz, explicavam a sucessão das batalhas e guerras que fizeram deste país, velho de 800 anos, um rematado sucesso de sobrevivência e liberdade.




Os jovens aprendem na escola, do infantário à universidade, tudo o que os distingue dos outros. Sim, patriotismo quer dizer orgulho, pertença, diferença e disso não se envergonham os thais, que levam a extremos a sua singularidade sem que tal se exprima pela retórica do belicismo e do ódio contra o estrangeiro. Nas escolas há actividades patrióticas, o curriculo escolar inscreve-as como disciplinas obrigatórias e quem não souber a complexa trama de símbolos, bandeiras, pavilhões e flâmulas - da Casa Real, do governo, dos ministérios, das províncias e das Forças Armadas - , bem como os hinos, marchas e textos mais representativos da história de heróis e heroínas não passa ! No fundo, o patriotismo é mais importante que a aritmética, justifica a gramática e a literatura, dá substância à História e à Geografia, abre passo à preservação da natureza, da fauna e da flora. Depois, a Tailândia é uma monarquia budista. É, também, uma democracia, e se isso quer dizer "soberania popular", o povo só tem significado se for protagonista de uma vontade colectiva que ultrapassa as gerações. Explica-se, assim, o triunfo sobre o comunismo nos anos 60 e 70 e, recentemente, o estrepitoso fracasso da conjura plutocrática-mundialista que quase atingiu os seus objectivos.

Terminada a apresentação do calendário patriótico, a marinha real exibiu-se na praça fronteira. Um mar de aplausos e o hino nacional cantado por todos os assistentes. Aqui, as Forças Armadas não têm vergonha da farda que envergam, aqui não se padece desse tão ufano "civilismo" que por outras paragens reduziu os militares a funcionários públicos; aqui, ao Ministério da Defesa só ascendem titulares com formação militar. Conheci em tempos um "objector de consciência", por sinal filho de um ex-desertor, que tinha por tema predilecto catilinar contra Portugal. Anos depois encontrei-o "quadro superior dirigente do Estado". É preciso dizer mais ? Sim, Portugal precisa, com a máxima urgência, de uma boa barrela patriótica. Não é preciso ter grande imaginação: venham copiar à Tailândia. É para isso que existe a cooperação entre Estados.

แผ่นดินของเรา = Pên Din Khong Ráw (A Nossa Pátria)

A mulher que ficou


Cine paradiso Siamensis: o lugar do português



A Luang Pridi Phanomyong, uma das figuras decisivas e controversas da vida política tailandesa do século XX, devo a gratidão de poder ter usufruido centenas de horas de estudo na biblioteca da Universidade de Thammasat, por ele criada. Não foi apenas um político como tantos outros que a memória sepultou: foi jornalista, ensaísta, legislador, investigador, novelista e realizador de cinema. O Rei do Elefante Branco / Phra Jáw Changpeuk (1940), inspirado em novela homónima do próprio Pridi, é hoje considerado pelos cinéfilos um ícone do cinema a preto-e-branco. Conta as guerras entre siameses e birmaneses das décadas de 1540 e 1550, em que Fernão Mendes Pinto participou como soldado da fortuna integrado nos chamados Farang maen pren (corpos militares de europeus) ou samák (voluntários). A presença dos portugueses é uma constante ao longo da fita. Ali está a imagem do farang estereotipada pela fantasia thai do estrangeiro branco, violento, peito couraçado, espada à cintura e arcabuz.


Anteontem pela noitinha assisti à sua projecção ao ar livre, em plena capital. O filme é, bem entendido, um vibrante manifesto nacionalista e emparceira com fitas da mesma geração: Ivan o Terrível, de Eisenstein, Coroa de Ferro, de Blasetti, Camões de Leitão de Barros. Dirão as más línguas que integra a campanha patriótica em curso. Diria, antes, que faz parte - utilizando um palavrão que detesto - do "imaginário" nacionalista thai. Valeu a pena ver a tela encher-se com os grandes planos de batalha, o espaço invadido pelo não-stereo, o magnífico projector dos anos 40 a lançar o jacto de luz.


สดุดีมหาราชา

Para fazer subir o moral


O DN, talvez a última amarra ao país distante, noticia hoje que a maioria dos crimes de pedofilia ocorrem no seio da família (que novidade), que há oito a dez milhões de armas em Portugal (que segurança) e que Portugal se encontra na 27ª posição entre os países onde melhor se vive no mundo (que alívio). Daqui a quatro meses volto a passar os olhos pelo jornal para ver se não há novidades.


Die Dreigroschenoper

Não me falem em cultura


A cultura e a tradição justificaram o seppuku, a excisão (vulgo mutilação genital feminina), a lapidação de adúlteras, o talhar de membros e narizes de pequenos ratoneiros, o ferro caldo para apóstatas, os suplícios públicos, a tortura, as fogueiras e em seu nome se levantaram as mais iracundas vozes da conservação quando se tratou de justificar a escravatura. A civilização, essa bate-se por causas nobres: a despenalização das drogas, o infanticídio até às não sei quantas semanas, a bondade da guilhotina e da cadeira eléctrica, as guerras libertadoras e até a bomba atómica lançada sobre duas cidades japonesas. Não há diferença senão no modo: são biombos de hipocrisia e aquietadoras da cobardia irresponsável.

Anteontem, um touro teve a brilhante ideia de fazer justiça pelos próprios cornos. Os homens da cultura dirão que a tourada é milenária, que a tensão entre o homem e o animal atinge culminâncias e que o sangue derramado é gota no oceano da carnificina muda que nos chega ao prato do bife, da galinha à fricassé ou da lagosta cozida viva. Por mais que queira compreender o argumento, o pouco de civilizado que tenho impede-me de aceitar que uma tradição, só por ser tradição, tenha vantagem sobre a repulsiva brincadeira envolvendo centos de espectadores inebriados com o sofrimento de um animal. Entre a tourada e as lutas de gladiadores, optaria pela arena do Circo Máximo. Aquele senhor Touro valeu uma tese de antropologia animal.

Perdemos o mar, ficamos com os touros e os bofetões no Lobo Antunes


A direita portuguesa, perante as aporias da acção, prefere [sempre] fazer o maior mal possível. A direita portuguesa é a mais semita da Europa, pois raramente exercita a razão e do sagrado só tem a percepção do proibido e a sede da punição. A tara moralona a que aqui por várias vezes me referi, associada à tara jurídica, transformou a direita que temos em coisa tão imprestável que só faz mal às instituições que julga defender - a Igreja, as Forças Armadas, a propriedade - e às crenças (boníssimas) que fazem o mistério da identidade nacional. Contra tudo, não é por nada e até se virou contra aquilo que dela fazia uma excepção no magma do odioso tribalismozinho europeu.

A direita portuguesa faz mal a Portugal: tornou-se racista num país sem raça; é "europeia" num continente onde nunca estivemos; é pelas "tradições" que passaram e revolucionária na cópia daquilo que sempre repelimos. A direita portuguesa especializou-se no ataque ao Brasil e ao brasileiro, quando o único futuro que nos pode salvar da bantustização da "gorda, velha e hipócrita" Europa é o Brasil, futura grande potência. Por isso, sem nunca ter aberto um livro, sem saber escrever duas linhas ou associar duas ideias, fez-se paladina do anti-acordo ortográfico. Por isso, sem jamais ter posto um pé na Baía, em Luanda, Lourenço Marques, Goa, Macau ou Timor, desdenha da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o tal forum que foi vilmente traído pelos "europeístas" num tempo em que a Europa era a nova pimenta, o novo ouro e a nova Mina do Rand. Fez-se pró-Berlusconi, pró-Le Pen, pró-plutocracia à outrance, pró-tudo o que conseguiu associar ao sucesso e ao poder que não tem e nunca terá, pois é a direita que ficou onde ninguém quis ficar.

Com excepção de algumas plumas ilustres - Rodrigo Emílio, António Manuel Couto Viana - de uma voz de excepção - José Campos e Sousa - e de duas ou três cabeças que insistem em chamá-la à razão, a direita portuguesa não fez um escritor, um músico, um pintor, um escultor, um cineasta, nada. Ficou-se pelas pragas e rabujices, pela difamação e miríficos "ajustes de contas" e "tribunais da história" que nunca se reunirão. Ficou a direita com as promessas de bofetões ao Lobo Antunes - quem, se não um rematado cobarde, pode ter o topete de bater num homem de 70 anos ? - como antes o fez com Saramago, que era criatura odiosa, mas até nos deu um Nobel. Ora, a direita não pede o regresso às tradições que fizeram Portugal confundir-se com Oceano, Império, África, Ásia e Américas. Ora, não pede a direita a Restauração da monarquia, que foi o esteio do mais lavado portuguesismo. Não, isso não interessa. O importante são as touradas - de morte, se possível - proibir isto e aquilo, dar uns bofetões ao Lobo Antunes e fazer uma fogueira com o milionário papel impresso de Saramago. Não, o latim não interessa, a literatura não pesa, o aprimoramento e o estudo cansam. A maior prenda que poderiam dar à esquerda é, sem tirar, a direita portuguesa.

Coisas que ficam


Dei aulas naquela universidade durante uma década, mas ali fui também responsável pela biblioteca e director do Curso de pós-graduação em Ciências Documentais. Foram anos trepidantes de actividade distribuída pela Biblioteca Nacional, com uma corrida ao jornal diário onde exercia funções [não remuneradas] como director-adjunto, nova corrida para as aulas do mestrado na Universidade Nova, que viria a concluir em 1999, mais um táxi em velocidade contra-relógio para chegar a horas à universidade para leccionar a cadeira de Introdução ao Pensamento Contemporâneo. Assim foi durante três mil dias. Foram anos interessantes, mas confesso que hoje não faria metade, pois com o passar dos anos apercebi-me que devemos fazer uma coisa de cada vez e que o dinheiro não é tudo. Aliás, que eu saiba, nunca ninguém fez dinheiro a trabalhar. O dinheiro faz-se por outras vias, mas como dele só preciso para viver com independência e dignidade, recolhi-me à vida de funcionário público e julgo ter feito dois bons mandatos enquanto chefe de divisão de investigação numa instituição que existe há mais de 200 anos. O problema de hoje é que as pessoas vivem para mil projectos, mas raramente deles fica a mais pequena migalha que assinale essas correrias.

Como saí de Lisboa em 2007, com bolsa em boa hora concedida pela FCG, não tive conhecimento do lançamento de uma obra magna, grande como um tijolo, que as edições lusófonas publicaram nesse ano. Há semanas, inesperadamente, o livro veio ter-me às mãos e lá estava um ensaio que escrevera a pedido do então reitor da Lusófona, o Professor Fernando Santos Neves. Li-o como se não fosse meu, pois tantos anos passados já mal me lembrava daquilo que escrevera. Para quem se dedica à investigação, o que fica é o papel impresso, com erros, com vulnerabilidades, ideias entretanto corrigidas. É como se víssemos uma foto antiga. Agora, que estou no momento culminante de anos de estudo sobre as relações em Portugal e a Tailândia, em vésperas da defesa de tese sobre o assunto que me trouxe a este canto do mundo, só antevejo o momento em que "a tal obra" chegue às rotativas e fique para dez, cem, duzentas pessoas que se interessam por estas coisas. Um livro não é escrito para os outros. É para nós. O importante é aquilo que ele produziu em nós. Quando "o tal livro" sair, vou fazer umas férias longas, despreocupadas, serenas. Estava a remoer estas vulgaridades virgilianas quando tocou o telefone. Era o meu chefe que me dizia: "Miguel, avance com isso porque para o ano há muito trabalho".

Também quero um país destes


A Tailândia está em "crise", dizem os entendidos ocidentais. Sim, boa crise esta que conhece 9% de crescimento económico (2010), 1.6% de desemprego, inflacção de 3.4% e uma dívida pública correspondente a 40% do PIB. Nós, europeus, cheios de futuro, estamos a correr em tropel para níveis de rendimento e consumo próximos dos anos 60, temos dívida pública que se aproxima dos 85% e desemprego real a bater os 15%. Depois, há o double standard. Na Tailândia, um deputado vence 1000 Euro, um ministro 2000 e o presidente do parlamento 3000 por mês. Nós estamos bem, pois batemos em double standard as mais empedernidas "aristocracia". Ah, falta falar da justiça thai, também flagelada pelos avisados ocidentais. Na Tailândia, o tempo médio de criação ou a extinção de uma companhia é de dez dias, como a constituição de um processo por difamação é de 30 dias, com 15 para trabalho dos tribunais e 15 de recursos; ou seja, dois meses. Na esclarecida Europa, isso arrasta-se por três ou quatro anos, com as custas a correrem pelo difamado. Bendita crise esta, a da Tailândia. A receita podia passar a integrar o cabaz das exportações do país, que só no passado ano aumentaram 50%.

Só a Alemanha se salva da vergonha




Falei hoje com um oficial superior do exército tailandês enviado ao Afeganistão como observador. Não se trata de um homem dado a grandes emoções. Disse-me calmamente que a guerra está praticamente perdida, que as notícias da CNN são filtradas ou inventadas, a coligação só domina as grandes cidades [de dia], que ninguém se pode aventurar sair só e sem escolta de Cabul, o governo perdeu o controlo sobre a maioria do território, as forças americanas estão reduzidas à defensiva, a droga e o alcoolismo atingem proporções inimagináveis e que aquilo se transformou num sórdido negócio para os plutocratas. De todo o desastre iminente, só se salvam os alemães. O Bundeswehr dá caça aos guerrilheiros, sobe montanhas, percorre os desertos, acampa fora das cidades e ganhou a confiança da população. De facto, faz falta à Europa a grandeza da Alemanha. Sei que estas coisas são politicamente muito incorrectas, mas há que voltar a falar no rearmamento da Alemanha, pois se algo de muito grave se passar sabemos que não podemos contar com os americanos, em retirada do Iraque depois de uma derrota inapelável.


Jan Kiepura: Heute Nacht oder Nie (1932)

Monarquia e liberdade


No próximo domingo realizam-se eleições em Banguecoque destinadas a eleger os deputados locais. A situação mudou, muito e para melhor ao longo dos últimos meses. Reposta a ordem e segurança, as liberdades políticas voltaram ao quotidiano dos cidadãos e partidos. A capital vai assistir a uma luta renhida entre três formações ideológicas muito diferentes e do pleito de domingo começará a desenhar-se o futuro quadro político do país. Ao "centro", o Partido Democrático do primeiro-ministro, partido monárquico advogando reformas lentas e seguras. Abhisit foi o grande triunfador da tentativa falhada de golpe de Estado plutocrática-comunista que assolou a Tailândia no início do ano. Agora, que a economia oferece números de crescimento imparável, terá tempo para consolidar a dinâmica. À "direita", o amarelo Partido das Novas Políticas, monárquico, budista militante, nacionalista e anti-globalização. O resultado que vier a obter mostrará ou não as suas possibilidades como força de desempate, caso os vestígios do thaksinismo ainda consigam expressiva votação. À "esquerda", os vermelhos, já sem a retórica inflamada do passado, muito lavados e cautelosos. O vermelhismo violento está atrás das grades e começa, como aqui dissemos, a surgir uma esquerda trabalhista, moderada e respeitadora do Estado de direito.


Hoje, em vários locais da capital, a comissão nacional de eleições realizou jornadas públicas de apelo ao voto - qualquer que seja, azul, amarelo ou vermelho - lembrando aos cidadãos que a participação é a alma da democracia e que cabe aos eleitores acorrerem às urnas para escolherem os candidatos da sua predilecção. É uma lição de democracia e liberdade, esta que o regime tailandês oferece ao mundo, calando cerce a má-vontade, má-fé e mentiras que os inimigos da Tailândia andaram a espalhar por meio mundo durante o golpe vermelho. A democracia é um método e uma cultura. Os tailandeses estão a construir o caminho da reconciliação, mesmo que alguns bandos terroristas persistam em recorrer à violência e intimidação. Ontem, uma granada foi lançada e feriu gravemente um segurança, mas para os tailandeses tal é interpretado como um acto localizado e insignificante. É sempre bom lembrar que os inimigos da liberdade e da monarquia não páram e que, para terroristas, só há o desprezo e a força da legalidade. Há que ensinar aos terroristas a bondade participação política, do diálogo e da legitimidade pelo voto.
Fotos Combustões

"Olhe, vizinho, eu cá vou votar na suástica"


A cidade está cheia de suásticas. "Phêuan Bân, fâng dí-di, dijân já song kânén siang chók dí", ou, por outras palavras, "caro vizinho, eu cá vou votar na suástica". Era a minha vizinha do lado, uma senhora de uns cinquenta anos, professora de História no liceu do bairro. Fez-me a confissão no elevador, pois perguntei-lhe se estava preparada para votar nas eleições locais de amanhã. Retirou do saco das compras um prospecto do Novas Políticas e apontou para a suástica com um grande sorriso e acrescentou: "são os melhores e nunca se meteram em corrupção". Não sei se será este o veredicto das urnas, mas parece-me sintomático do cansaço de anos de lutas políticas que quase terminaram numa guerra civil induzida pelo homiziado Thaksin e o seu movimento vermelho. A radicalização da vida política levou à ascensão do movimento que pugna por um budismo rigoroso, pela aplicação da autarcia económica e pela refundação do nacionalismo thai. Partido de militantes, com grande capacidade de mobilização, auto-proclama-se Exército Budista da Tailândia e não abdica da mais dura terminologia. Considera a democracia uma "fraude ao serviço dos ricos", defende um sistema de representação orgânica, é ferozmente anti-ingerência farang na vida tailandesa e diz que é tempo do país voltar ao pacto original, o que quer dizer à monarquia tradicional. Julgo que não serão grandes as possibilidades eleitorais do movimento, mas se ultrapassar os 15%-20% será, sem dúvida, um tsunami político, pois no futuro próximo o actual governo ficará refém de uma opinião pública conquistada pelas soluções radicais. Naturalmente, esta suástica nada tem a ver com a outra. Aqui, a suástica dá pelo nome de Boa Sorte e com o trevo ecologista ao centro quer dizer voltar à pureza do Budismo e ao templo da natureza.


O Partido propõem-se acabar com a especulação imobiliária, erradicar os bairros de lata mercê da nacionalização de largas áreas da cidade e incentivar a construção de bairros sociais através da iniciativa cooperativa. Defende uma política verde, com prioridade para os peões, interdição do trânsito em zonas comerciais e estender a rede do metropolitano. Neste particular, pode-se considerar uma formação política de vanguarda. Não se trata de um movimento desprovido de quadros. Os seus animadores e dirigentes são amiúde académicos, havendo também um largo contingente de dirigentes de associações religiosas, grupos cívicos e ambientalistas, bem como muitos artistas, escritores e jornalistas.Afirmam ser os médicos da Tailândia e querem curar o país dos excessos da febre do dinheiro.


Vitória azul e branca


O partido de Abhisit venceu folgadamente as eleições hoje realizadas em Banguecoque, elegendo 210 conselheiros regionais (82%). A abstenção foi grande e penalizou severamente o nóvel partido das Novas Políticas, que não teve um só dos seus candidatos eleitos, bem como os vermelhos, que só conseguiram 39 (15%). O partido no governo sai reforçado deste pleito e a pouco expressiva votação dos nacionalistas do NP garante a Abhisit liberdade de agir sem constrangimentos na construção de uma nova maioria, talvez monocolor, para as eleições gerais que se realizarão no próximo ano. Os vermelhos do Peua Thai, ainda fortes em algumas zonas da capital, receberam com alguma estupefacção os resultados, pois ainda ontem acreditavam na possibilidade de ganhar nos grandes bairros operários dos arredores. Há ou não democracia na Tailândia ? Ou só há democracia quando se tomam de assalto as ruas, se incendeiam edifícios e se alvejam as forças da ordem ?

Foi há 2 anos



Foi há dois anos que se iniciou o levantamento nacional democrático contra a plutocracia. Hoje fui dar um abraço ao amigo Kietisak, artista e militante pela causa do Rei e da Liberdade que perdeu uma perna num ataque bombista perpetrado pelas milicias vermelhas pró-Thaksin. O povo não teve medo, nem do dinheiro nem das granadas; avançou compacto e decidido, cerrou fileiras em defesa do trono e da nação e ganhou. Se não tivesse havido reacção na rua ao crescendo totalitário, a Tailândia seria hoje uma ditadura. Valeu a pena, como valem todos os movimentos ditados pelo coração e pela responsabilidade da cidadania quando o Estado e aqueles que detêm o poder abandonam os interesses permanentes da nação.Se o povo português tivesse feito o mesmo em Setembro de 1974, não tínhamos passado pelas vergonhas e vexames a que fomos sujeitos e o desastre teria sido evitado. Mas não, aí ficou tudo em casa. Aqui, o povo saiu à rua. Ensinamentos !

Os camisas vermelhas sem amigos externos


Não, não é uma fotografia tirada no Soweto nos anos 70. É um carro blindado sul-africano anti-motim aplicado para defender uma justa causa, a causa dos 5% de moçambicanos frelimistas que não são miseráveis, que têm escolas de excelência com mensalidades pagas em dólares e euros, que viajam para os paraísos fiscais, que se cobrem com as armaninhadas e ocupam a totalidade dos lugares na administração, na vida empresarial e na banca. É a repressão necessária contra os camisas-vermelhas de lá, os tais 40% de desempregados, cidadãos de terceira e quarta categoria que vivem com 1 dólar por dia nas barracas de Maputo e da Beira, sem água corrente e sem electricidade. Quando aqui 5000 vermelhos, pagos a fundo perdido por Thaksin ocuparam o centro da capital tailandesa, mataram, lançaram granadas e lançaram fogo a dúzias de edifícios, houve quem os apaparicasse, os recebesse ou fosse recebido entre palmas no estrado de um comício ininterrupto. Os camisas-vermelhas de Moçambique são outra coisa: estão a impedir o "crescimento económico", "sabotar a economia", amedrontam o investimento externo. São uns bandidos, pois atreveram-se contestar os sacrossantos pergaminhos de uma brilhante liberdade que lhes faculta o acesso ao voto em eleições manipuladas. São estes, pois, os critérios dos afanosos amigos de todas as causas justas, sim, aquelas que enchem os bolsos de tanto europeu prenhe de sonhos justiceiros. Esperei dois dias para ouvir dos sempiternos d'Artagnans um simples poemeco em defesa do povo de Maputo. Nada ! O mundo é feito, decididamente, para os hipócritas.


Das lachende Saxophon

Der Untergang des Abendlandes


«Mais do que de perda de referências, é de uma perda de magnetismo que se trata hoje. Vive-se uma desmagnetização geral dos valores, e sem valores pode haver chefias, mas não há lideranças. Pode haver impulsos, mas não há soluções. Pode haver gestão, mas não há visão. Lidamos hoje com um mundo em intensa transformação, o que o Ocidente sente como um drama, mas o resto do mundo vê como uma fantástica oportunidade. Todos os dias verifico isto mesmo nas reuniões da UNESCO: um mundo entusiasmado face a um Ocidente desmoralizado. A energia emergente que se contrapõe à fadiga declinante, com Darwin a sugerir a todos e a cada um o seu provável futuro. O Ocidente, e nomeadamente a Europa, aparece cada vez mais como um bloco conservador, nostalgicamente à espera que o tempo volte para trás - aí a meados da década!... -, quando a ilusão do seu natural domínio mundial se começou a esfarelar. Mas não haverá regresso
Manuel Maria Carrilho, ontem no DN

N'oublier jamais

Nós, pied-noirs


O Paul, africano como eu, tem sido das poucas amizades europeias perduráveis que fiz na Ásia. Vinte e poucos anos mais velho do que eu, nasceu na Argélia e pela Argélia pegou em armas para defender o direito de permanecer na terra que amava e era a sua pátria. Traído pela França, como gosta de frisar, sobretudo por esse enigma camaleónico, mitificado e intocável que é De Gaulle, percorreu o mundo e a sua vida é uma aventura. Ao abandonar a sua Argélia, ele que lutara pela França, recebeu o prémio de um mandado de captura emitido pelas autoridades de Paris. Foi para Espanha e daí para Portugal, o único país que lhe deu acolhimento, pelo que tem por nós uma grande simpatia. É, à sua maneira, um lusófilo.

Depois, foi professor universitário no Senegal e Madagáscar, esteve na República Centro-Africana e no Zaire, conhece como ninguém o que resta da velha Indochina Francesa e vive entregue à leitura. Já não há homens assim. Alia uma grande cultura histórica, literária e teológica [católica mas não cristã, como gosta de dizer, pois cristão transformou-se em sinónimo de parvoíce americana] a dotes de grande conversador. Dos ocidentais que conheço, foi dos únicos que ousou sair às ruas durante os combates de Maio e fez reportagem, ouviu os intervenientes, riu-se do corta-cola dos enviados das agências ocidentais e partilha comigo a convicção de que a Tailândia esteve a milímetros do abismo. Como se recusa aprender "essa língua de piratas e mercadores que é o inglês", aprendeu Thai para comunicar com os thais. Vive entre thais sem cair no ridículo de querer ser thai, pelo que o seu ocidentalismo é, sem tirar, igual ao meu. Ah, esquecia-me, fala e escreve árabe !

É um "direitista" como eu, ou seja, não é racista, não é euro-cêntrico, não acredita em estórias da carochinha nem no romantismo dos recitativos grandiosos e ocos com que se entretém a direita tribalista. Tem a grande qualidade de dizer em poucas palavras aquilo que é essencial, tocando no cerne sem se perder em fogos de artifício. Um dia, sem hesitações, definiu a França como um país de "regicidas" e disse, perante o estupor de ouvintes sem grande preparação política que "a democracia são 60 anos da história europeia, ou seja, quase nada". É um monárquico estético e não acredita, decididamente, no universo de plástico e nas superstições em que vivem emparedados dos farang aqui estabelecidos. No Paul encontrei um outro africano branco, apanhado no fogo cruzado e réu involuntário no tribunal da história que juntou vítimas e assassinos, leais combatentes e desertores, patriotas e derrotistas.

Estou absolutamente convencido que a Argélia, como o meu Moçambique, perderam ao deixar-nos sair. Agora que se aproxima mais um "7 de Setembro", vejo que a ingrata História nos deu razão. Nós éramos o grão de sal que se perdeu na sopa da independência.



L' Hymne des Français d' Algérie – Jean Paul Gavino


África nossa: resistência da memória


A minha mãe não é uma figura literária nem uma muleta ideológica, uma bandeira ou uma frase-feita. Existe. Nasceu em África há setenta e sete anos, viveu no mato e cresceu, como qualquer filha de quadro administrativo colonial, numa casa branca de dois andares, com um jardinzinho à frente e o pau da bandeira onde, todas as manhãs, o meu avô fazia continência à bandeira portuguesa que subia no mastro enquanto o corneteiro soava a ordem de respeito. Durante anos, foi a única criança branca num concelho do tamanho do Baixo Alentejo, pelo que aprendeu os idiomas locais e brincou com as crianças negras das aldeias vizinhas. Em vez das bonecas, encontrou no desenho e na pintura companhia para os seus sonhos e fez-se artista sem frequeentar academias. Pinta há setenta anos. Teve o seu momento de consagração em 1973, quando realizou na Casa Amarela de Mouzinho de Albuquerque, em Lourenço Marques, uma exposição que concitou os maiores aplausos. Foi com o dinheiro dessa exposição que saímos de África para não mais voltar, pois o cataclismo abateu-se sobre todos, nós os que partimos para o exílio, eles que ficaram entregues ao que sabemos. Da sua boca nunca ouvi um lamento, uma frase ditada pelo ódio. Aliás, se há pessoa menos racista neste mundo, mais amante de África e daquilo que a África é para nós - nossa pátria - essa será certamente a minha mãe.

Aos setenta e sete anos continua a cultivar o seu jardim de memórias. Vive em África em pleno Alto do Lagoal, em Caxias. Tudo o que a cerca - os objectos, os livros, as fotografias - são o magro espólio desse século em que por lá esteve a minha família. Finalmente, depois de 37 anos de silêncio, os seus quadros voltarão a ser expostos, agora na Fundação Marquês de Pombal, em Linda-a-Velha. A sua obra é já considerada única, pois constituiu a mais extensa galeria de memórias coloniais existente em Portugal. Estou certo que a minha mãe, aos 77 anos, será uma revelação para muitos, ela que nunca teve lóbis nem nunca andou atrelada a grupos e galeristas que fazem o sucesso postiço de tanto artista. O tempo acaba sempre por chegar, mesmo que seja aos 77 anos. Parabéns, Ana Plácido.


Manâmbuas ripademar santanhocos pihamaiáu


Um encontro inesperado no metro de superfície de Bangkok. Ouvi falar português e cumprimentei o casal de sessenta e tal anos. Disseram-me que aqui estavam desde anteontem, que são naturais de Lisboa mas que estão estabelecidos em Luanda. Em menos de cinco minutos, entre a Estação de Siam e Asók, foi um desfiar de ditos idiotas sobre Portugal, referências à "independência", ao "presidente Neto", ao "colonialismo", à exploração "vergonhosa que os portugas" (sic) por lá fizeram, à "democracia" e aos meninos do Huambo, os tais que "Vão aprender coisas de sonho e de verdade, Vão aprender como se ganha uma bandeira, Vão saber o que custou a liberdade". Foi como um murro no estômago. Depois, olhei e vi que os dois não passavam de criaturas semi-cretinas, da tal geração que afundaram o país e que agora estão em África porque pinga e não por qualquer outro elevado propósito. O homem deixou para o fim, como quem mostra a medalha, a sua palma de ouro: "sabe, eu não fiz a guerra, com muito orgulho. Desertei". Ao afirmá-lo, um brilho de orgulho assomou-lhe à íris. Que lição de sacrifício e cidadania. De facto, enquanto a biologia não tratar de vez dessa maldita geração dos sorridentes idiotas, nada feito.

Depois, só me lembrei daquilo que sempre ouvi da minha mãe: "manâbuas ripademar, santanhocos pihamaiáu". Querem saber o que quer dizer ? Pois, abram um dicionário de calão ronga-português. Ao sair, disse: "sabem, eu sou de Moçambique, África Oriental Portuguesa e lá tenho enterrados bisavós, avós e todos os meus sonhos e ilusões a respeito das liberdades, das independências e da vossa geração". Saí e nem me virei. Eu sei, tenho mau feitio e já não me calo nem perante o Papa.

Hoje sinto-me assim: mission accomplie


Eram 5.45 da manhã de sexta-feira quando a tecla do ponto final negro caiu implacável sobre o branco do ecrã. Ordens cumpridas, trabalho terminado. O primeiro livro sobre as relações entre Portugal e o Sião está feito. Há dias felizes. Como dizia Friedrich der Große, que tenho sempre em cima da minha secretária: "o maior e mais nobre prazer que um homem pode ter neste mundo é o de descobrir novas verdades e o segundo o de abanar velhas mentiras".

Sião latino e Sião americano

Foram vinte, trinta, quarenta ou mais os italianos que marcaram para sempre a face da moderna Banguecoque. Escultores, pintores, arquitectos e decoradores, ceramistas e vitralistas deram à capital do Sião, já de asfalto e trens eléctricos, os cinemas, os teatros, grandes hoteis e a aura de confortável magia que garantiu o sucesso do turismo desde os anos 20 do século passado. Já aqui deixei dois apontamentos, um sobre Galileo Chini, outro sobre Corrado Ferocci (aliás Sinlapa Bhirasi). Nos últimos dias tenho andado entusiasmado com um outro notável italiano que aqui deixou obra imensa. Gerolamo Emilio Gerini era militar e aqui chegou com um contrato do governo siamês para prestar assessoria militar. Inteligente, culto e desenvolto, aprendeu thai, interessou-se pelas artes, pela história, arqueologia e tradições orais, transformando-se num perito de sânscrito e estudos budistas. Foi um dos fundadores da Siam Society e marcou sulco profundo. Escreveu muito e fê-lo como ninguém. Que eu saiba, foi o primeiro a tocar nas pedras do mú bâan (aldeia) Protukét de Ayutthaya e, depois retirou do esquecimento a comunidade Protukét de Pukhet, estudo que aconselharia a qualquer interessado nestas coisas da presença portuguesa no Sudeste-Asiático.
Que diferença entre a potência do espírito latino, a sua entrega e amor a esta terra e a esta gente e aquilo que sucessivas gerações de americanos aqui deixaram. Com excepção de Jim Thompson, que foi o artífice da produção industrial da seda tailandesa, os americanos aqui não deixaram nada que mereça atenção; pior, como me dizia há tempos um embaixador, os "americanos foram a maior desgraça que aqui aconteceu". Diferenças !
Quando é que termina a era americana ?



Vivere – Tito Schipa


Blogues portugueses na Ásia: o muito bom, o muito mau e o nada


Antes do advento da blogosfera, havia quem pensasse que a Ásia era um inexistente para os portugueses. Havia Macau, umas lembranças de Goa, uns livros sobre Venceslau, umas fotos de Pessanha. Havia, incontornável, o labor muitas vezes acrítico e assistemático, quase torrencial de bom coleccionismo arquivístico que foi o bom Padre Teixeira, que ninguém afeito a estas coisas deixa de consultar. Subsistiam, entre o literário e o ensaístico, os trabalhos de Martins Janeira e Danilo Barreiros.

É certo que dois ou três académicos de excepção, contra a corrente do esquecimento, alargaram horizontes, rasgaram caminhos, saíram da geografia liliputiana do que sobrava do Estado da Índia e são hoje a força que empurra o engenho para os vastos espaços da grande China e da Insulíndia. São eles, importa assinalar porque não têm paralelo, Luís Filipe Tomaz e António Vasconcelos de Saldanha. Na conspiração do silêncio e da ignorância que quis fazer crer aos portugueses que a Ásia estava longe, caíram no pântano as incómodas pedradas de um grande fotógrafo chamado Joaquim Magalhães de Castro. Foi graças a estes que a presença portuguesa não foi tragada pelo esquecimento, que nova leva de investigadores receberam o exemplo e o ânimo para desbravar arquivos. A Ásia das patacas e do exótico foi morrendo e vai ganhando volume uma Ásia séria, académica e com legibilidade mundial, impressa e séria que é a Ásia portuguesa feita de estudos, sem cabaia e sem ópios. Está a morrer, felizmente, a Ásia portuguesa inventada.

A blogosfera ajudou, pois, não sendo um medium académico, substitui a miserável prestação da chamada comunicação social no que à formação e informação de vastos públicos respeita. Lembro, entre o pasmado e o indignado, o atraso com que a comunicação social portuguesa se deu conta da magnitude dos recentes acontecimentos na Tailândia. Durante semanas, entre Março e Abril, com bombas e tiroteio nas ruas, limitou-se a recortar a tendenciosa conta-corrente das tais agências internacionais, facciosíssimas e prostituidíssimas. A blogosfera está aberta a todos e nela todos podem escrever na proporção das suas capacidades. Agora, a Ásia portuguesa já não é só Macau - muito embora Macau ofereça diariamente dois ou três excelentes contributos - mas é Malaca, Japão, a China, mais China, celulóide, mais celulóide, Coreia...
Como em tudo neste mundo, as coisas dividem-se em três grupos: o que é bom e fica, o que é muito mau e vai-se arrastando na lama como o escaravelho estercorário e o nada, que não existe, esteja ou não esteja.

Portugal não acaba em Elvas; diria antes que começa na espuma do mar que se estatela nas areias de Lisboa. Ontem recebi este simpático presente e é ao Nan Ban Jin que dedico estas palavras. Quero que ele aqui esteja em Bangkok para o lançamento do livro.

Açores-Tailândia


Foi assinado em Banguecoque um Protocolo de Cooperação entre a Embaixada de Portugal na Tailândia e o Observatório Regional de Turismo dos Açores, representado pelo Professor Carlos Santos. Visa o acordo incrementar a divulgação dos Açores na Tailândia e a captação do fluxo turístico tailandês para o arquipélado atlântico num momento em que aumenta exponencialmente o número de tailandeses que procuram destinos turísticos na Europa. Iniciativas como esta indiciam a crescente preocupação das nossas autoridades em equilibrar a balança das relações entre os dois países. Onde antes havia portugueses nas praias da Tailândia, passará a haver turistas tailandeses com forte poder aquisitivo em terras portuguesas. O Embaixador Faria e Maya deu conta do crescente número de pedidos de vistos para turismo. Com a aproximação das celebrações dos 500 anos de relações entre os dois países, jornais, revistas e canais televisivos tailandeses acordam para a divulgação da história e cultura portuguesas e há que aproveitar sem desfalecimento a oportunidade que se abre.

Ontem, passando por um quiosque para comprar a revista mensal Silapá-Prawatisát (Arte e História), a mais prestigiada revista cultural tailandesa, deparei com um longo artigo sobre o regicídio de 1908 e a revolução republicana de 1910. O autor, Professor Krairoek Nana, é um amigo nosso e foi-lhe confiada pelo governo tailandês a redacção da obra oficial sobre os 500 anos. Tudo parece encaminhado para aliar memória e relações comerciais. Aliás, não é o turismo uma indústria ?

O poder da estupidez


La bêtise est infiniment plus fascinante que l'intelligence... L'intelligence a des limites, la bêtise n'en a pas! (Claude Chabrol)

É um dos mais fascinantes mistérios da humanidade, a estupidez. Tem um poder tremendo, impõe-se, fica, lança raízes, reproduz-se e é copiada porque é simples, convincente, não exige esforço. A estupidez é comummente associada à maldade. Discordo, a estupidez está lá, não corre riscos e medra em todos os terrenos e atmosferas. A maldade denuncia-se pois, como o bem, ocupa um lugar, reclama obra. O grande drama do tempo presente não é a maldade, pois para lhe fazer frente surgiu sempre, na mesma proporção inversa, quem a combatesse. A estupidez, não, não tem nem amigos nem inimigos, existe por si e é absoluta. Não é privação. É estado. A maldade cansa-se, pode ser eliminada, trancada atrás de barras, a estupidez não. Por isso, é a mais poderosa força na história dos homens.

A África da minha mãe

Sisal

Casamento

Machamba

O café para os patrões

O barbeiro

O senhor Administrador

O paraíso deve ser tropical


O inferno, para os cristãos, é uma caldeira, tal como o nárók o é para os thais, com a atenuante de não ser eterno. Para os muçulmanos, o zamhareer, o círculo mais duro da condenação, é gélido. Contudo, que eu saiba, o paraíso de todas as religiões assemelha-se: é frondoso, abundante, ameno e sereno. Pensei nisso várias vezes, pois o além é imaginado como o melhor local onde se pode viver para sempre; logo, reproduz a ideia de ambiente mais querida pelas pessoas. Eu, que nasci em África, abomino o clima europeu, seja o continental - com as chuvas gélidas do outono, o frio cortante e seco dos invernos escuros, os verões irrespiráveis, as torrentes primaveris - seja o "atlântico". Pensar que terei de passar o próximo inverno em Portugal deixa-me apreensivo, pois tenho ido visitar a família no verão e nem sinto a diferença.

Aqui, o calor é permanente, mas há coisas espantosas que se podem fazer para o combater. Por exemplo, ontem estive toda a noite acordado a dar os últimos retoques num trabalho. Às cinco da manhã desci as escadas e meti-me na piscina. Água morna do solão da véspera. Umas braçadas, seguidas de um duche e pequeno almoço. Depois, ventoínha de tecto em máxima rotação e um sono de oito horas. Acordei às 3 da tarde e fui comer à beira do Chao Phraya, no restaurante do hotel ao lado da nossa embaixada. Refeição terminada, voltei a casa e sentei-me no pequeno jardim. De súbito, o esquilo da árvore desceu até uns dois metros da minha cabeça e falámos durante uns minutos. É esta a maravilha dos trópicos: viver numa cidade de 10 milhões com direito a esquilo privativo e uma piscina fresca às cinco da manhã. Na Europa, se contasse, dir-me-iam que estava louco.

Quando a estupidez faz política


Cumpriram-se no passado sábado 189 anos sobre a conjura militar que depôs em Goa D. Diogo de Sousa, Conde de Rio Pardo, Vice-Rei da Índia e homem de grande integridade e visão. Ao ser desapossado do posto no qual investiu a sua máxima competência e zelo, morreu com Rio Pardo a última possibilidade de Portugal se integrar na nova ordem internacional saída da derrota napoleónica e consequente hegemonia global marítima britânica. Os seus inimigos liberais quiseram fazer estragos irreparáveis na imagem e compleição do Estado da Índia, decretando sem pestanejar a extinção de todos os focos de acção diplomática e comercial que D. Diogo de Sousa havia estabelecido ao longo de meia década de intensa actividade. Juntamente com Rio Pardo, terminou a carreira de Miguel de Arriaga Brum da Silveira, o célebre Ouvidor de Macau, estratega da recuperação de Portugal no quadro da aliança marítima luso-britânica. Foi um desastre, pois os libertadores, como se auto-proclamavam, fizeram contra Portugal no Oriente mais que a soma de holandeses, franceses, maratas ,omanis e piratas haviam logrado ao longo de séculos. Foi, sem tirar, tudo muito parecido com aquilo que Melos Antunes, Rosas Coutinhos e demais libertadores conseguiram, quase sem oposição, realizar ao longo do ano e meio em que devastaram Portugal. É certo que a história nunca se repete, mas às vezes repete-se, para pior.

Quando os governantes eram do tamanho de uma fortaleza


Pediu-me um amigo que publicasse o retrato de D. Diogo de Sousa, Conde de Rio Pardo, sem dúvida o último dos grandes governantes do Oriente português. Hesitei, pois, desde o século XIX, quando se fala em governantes, surge-nos amiúde a imagem de homenzinhos que tanto poderiam estar atrás de uma bancada de mercearia a vender secos e molhados, como umas mantas aos quadrados na Feira da Ladra. Perdeu-se para sempre a ideia que o poder não serve para roubar, mas para fazer honra. Perdeu-se a ideia que ser governante não quer dizer servir clientelas, concitar aplausos e panegíricos, mas exercer com inquebrantável teimosia o interesse do Estado.

Homens assim já não existem. Rio Pardo fazia parte dessa geração derradeira de homens fadados para o mando. Era um mouro de trabalho, inquisitivo, meticuloso, experiente, exigente e justiceiro. Depois, era informado, lia latim, escrevia com toques de literato e era oficial de cavalaria; em suma, um clássico. Com 67 anos no dia em que foi deposto, mantinha intocada a panache e o orgulho de uma casta de serviço que foi varrida pelas chamadas ideias novas. O retrato que ainda hoje se encontra no Palácio do Hidalcão, na galeria dos Vice-Reis de Goa, parece desafiar o tempo. Antes assim, que se salve o passado, pois do presente não se falará !

Nuno Castelo Branco na Sagres, em Banguecoque


O Nuno, meu irmão, oferece o seu contributo à visita do navio escola Sagres a Banguecoque, prevista para a primeira quinzena de Outubro. Contactou com o nosso embaixador na Tailânda, António de Faria e Maya, oferecendo três telas a óleo alusivas a três navios da Marinha Portuguesa que noutros tempos e circunstâncias tocaram a "Veneza do Oriente", respectivamente o brigue São João Baptista, que levou a missão encabeçada por Carlos Manuel da Silveira, em Julho de 1820, a canhoneira Tejo, que ali esteve em 1890 tendo como comandante Venceslau de Morais e a canhoneira Bengo, que aportou em frente do nosso Consulado durante a crise franco-siamesa de 1893. As imagens foram elaboradas a partir de investigação feita nos Arquivos da Marinha e são, que eu saiba, a primeira contribuição de um artista português para as celebrações dos 500 anos de relações entre Portugal e a Tailândia que se iniciam oficialmente com a visita da Sagres. O Nuno prepara para finais de 2011 uma exposição em Banguecoque, inteiramente consagrada ao encontro das duas culturas.



Belos livros sobre Portugal



John dos Passos escreveu-o no verão de 1968 com o título The Portugal Story, sem dúvida um dos mais vibrantes textos de prosa doutrinal patriótica portuguesa escrita no século XX. Passos foi sempre um socialista mas neste livro, uma das mais bem concebidas e esmeradas edições da velha IBIS, o culto por Portugal e pela sua gesta marítima e imperial atinge culminâncias. Não é nem pretensioso nem didáctico à António Sérgio. É espontâneo, não tem tiques nem se polvilha de rodriguinhos de "nacionalismo estético". Devia ser ensinado nas escolas.

É preciso copiar, copiar, copiar



Exaltação patriótica, cultivar o amor-próprio, juntar, integrar e uniformizar sentimentos positivos. A Tailândia fá-lo diariamente sem ditadura, pelos pobres e ricos, pela maioria e pelas minorias. É assim que se faz a unidade e a cidadania. Um exemplo a copiar.

Belos livros sobre Portugal



Portugal, um livro que servia, nas palavras de António Ferro, para "matar saudades de Portugal". Previsto para o ano da Exposição do Mundo Português, só chegaria ao público em finais de 1946. Reunia as melhores penas da cultura portuguesa do tempo (Orlando Ribeiro para a Geografia, Luís Chaves para a Etnografia, Marcelo Caetano para as Instituições e o Direito, Delfim Santos para o Pensamento e Cultura, Diogo de Macedo para a História da Arte, Luís Teixeira para o Turismo) e contava com os melhores ilustradores e artistas plásticos em actividade (Frederico George, Manuel Lapa, Tom). Um pequeno monumento à arte de bem fazer e um manual de lavado patriotismo destinado a formar públicos.