Saturday, May 19, 2012

Pétain: 60 anos depois


Pétain em Paris, em Abril de 1944



A amnésia voluntária, o cinismo, o mascaramento e a manipulação da verdade histórica são instrumentos do exercício do poder e da luta política. Contudo, se impostos como limite ao conhecimento e dogmaticamente se substituem às fontes da verdade, transformam a historiografia numa pseudo-ciência ou, pior, em mera propaganda. A França comemorou este ano, de forma discreta mas não isenta de debate, 60 anos sobre o passamento do Marechal de França Filipe Pétain.

A figura do velho cabo de guerra, o único grande militar gaulês do século XX, vencedor de Verdun e salvador da França, surge envolta em mistério. A França reivindicou quinhão relevante da vitória de 1918 graças a Pétain. Contudo, em 1945, condenou-o à indignidade civil, retirou-lhe todos os direitos de cidadania, confinando-o a uma cela, onde morreria nonagenário e marcado com o ferrete de traidor. Terá sido ?

Não, Pétain ascendeu à chefia do Estado através dos mecanismos extraordinários inscritos na Constituição da III República. Em Julho de 1940, recebeu da Assembleia Nacional e do Senado - em votação absolutamente democrática na qual participaram quase todos os representantes do povo francês - 87% dos votos que decidiram a sua elevação à chefia do Estado, conferindo-lhe plenos poderes para negociar com os alemães um tratado de paz, que Hitler nunca quis discutir. Apoiaram-no deputados do SFIO (socialistas), da Gauche Démocratique (radicais socialistas), da Federação Republicana, do Partido Comunista, da União Democrática, do Partido de Unidade Proletária, dos Republicanos Independentes.

O Apelo de 18 de Julho, feito por de Gaulle a partir de Londres, não foi, decididamente ouvido nem pelos representantes do povo francês, nem pela maioria da população. Há um grande mito em torno do apelo do quase desconhecido de Gaulle, texto mítico que foi sucessivamente alterado, como também mítica foi a liderança daquele a que os americanos chamavam de "candidato dos ingleses a ditador da França".

A atestar a legitimidade reconhecida do regime dito de Vichy, o facto deste haver mantido relações diplomáticas normais com a URSS até 1941, dos EUA terem mantido embaixador junto do governo de Pétain até Outubro de 1942, assim como o Canadá (Novembro de 1942) e a Austrália (1944). A luta dos "Franceses Livres"(de Gaulle) com a "França Livre" (Pétain) surgia claramente aos olhos da diplomacia internacional como uma guerra civil e não como um capítulo da guerra global.

Depois, a popularidade. Para a maioria dos franceses, Pétain era por antonomásia o nome do orgulho francês. Até aos últimos dias da sua presença na chefia do Estado, recebeu os maiores banhos de multidão de que há memória na história francesa contemporânea. Foi uma força teimosa que se opôs aos ultras fascistas da colaboração rastejante, foi um dique aos abusos dos alemães, deu alento e esperança quando não havia vislumbre de futuro numa Europa que Hitler queria sem voz e sujeita à bota alemã. Pétain foi ainda mais: percebeu que a vitória de qualquer dos beligerantes (dos Aliados como do Eixo) ofereceria condições para o colapso da Europa, com vantagem para o comunismo (URSS) e para os EUA, dois poderes exteriores à Europa. A sua atitude surgia, de manifesto, muito próxima da de Salazar: no conflito entre a Alemanha e a Grã-Bretanha eram neutrais; no conflito entre soviéticos e alemães preferiam a vitória alemã e no Extremo Oriente eram claramente favoráveis aos Aliados.

O processo de Pétain e os enxovalhos a que o submeteram parece não terem tido grande efeito junto dos franceses. Quando, alquebrado e surdo, entrava na sala do tribunal onde decorria a abjecta farsa legal, as pessoas levantavam-se, os policias prestavam-lhe continência e na rua pessoas choravam de indignação e revolta. Pétain foi o bode expiatório, mas foi, sobretudo, a moeda de troca de de Gaulle no conflituoso entendimento que este teve de selar com os comunistas; o herói trocado pelo falso herói nos arranjos conducentes à França do pós-guerra. O velho senhor transpirava respeitabilidade por todos os poros; o novo dono da vida francesa, esse, traiu tudo e todos e foi, de facto, o coveiro da grandeza francesa.