
As pessoas são ignorantes, más, mesquinhas, volúveis, instáveis, infiéis, submissas, cobardes, difamadoras. Sócrates passou a cabeça-de-turco. Diabolizado, insultado, traído, abandonado. Os portugueses - ou aqueles que têm voz - precisam de catarses e bodes-expiatórios e lavam a sua culpa cobarde num homem. Sócrates abandonou o posto. Foi o fautor de todos os males, é o responsável pelo despesismo, pela desagregação da justiça, pela inoperância da saúde, pela implosão da segurança-social, pelo desemprego, pela regressão económica. Os outros, Cavaco, Soares, Sampaio, Guterres, Barroso foram espantosos, deixaram obra e cofres a abarrotar, criaram riqueza, trouxeram felicidade e orgulho. Sócrates foi futebol. Os outros revelaram os novos Camões, os novos Padres Vieiras. Sócrates foi autoritário. Os outros nunca cometeram o mais leve pecadilho nem jamais cederam ao demónio da hybris. Antes nunca houve sangue contaminado, pontes que desabavam, primeiras páginas do Independente revelando riquezas produzidas para além da compreensão de Midas, irmãos de ministras fugindo com dinheiros públicos, nomeações de filhas e filhos, munificentes ofertas a fundações. Não, isso nunca aconteceu nesta nobre, impoluta e sempre virgem democracia latina.
Uma noite inteira a ouvir fatwas e a demonstrações de profetismo ex-post facto. Só me ocorre uma expressão, que em miúdo ouvia correntemente de uma familiar: "Vão-se despir".