
A história faz-se com indícios, fragmentos e sombras. Não é necessário ter à mão milhares de documentos de arquivo para proceder à reconstituução de uma sociedade há muito desaparecida. Um monte de pedras e ruínas quase nada dizem. É necessário que as pedras nos falem e contem a sua história. Ora, um dos erros das historietas que se vêm repetindo ad nauseam sobre os portugueses no Sião é a de não saírem das ruínas do Ban Protukét ou de contarem a história do belíssimo edifício onde hoje se localiza a nossa embaixada. Há que escavar mais fundo, interpelar os documentos, cruzá-los com memórias, notas sumárias, gravuras, pequenas notícias saídas numa gazeta antiga. Lentamente, os mortos dão-se a conhecer, falam, agem e voltam à vida.
Pediu-me um investigador canadiano que lhe dissesse algo sobre os portugueses de Ayutthaya, pois está a escrever um livro sobre a nossa comunidade em Phuket e precisa de informação sumária para compreender o quotidiano dos católicos Protukét do Sião. Como o defeso de silêncio me foi imposto pelo meu orientador de dissertação de doutoramento - elementar sigilo - limitei-me a dar-lhe suaves pinceladas sobre essa gente que viveu e morreu na antiga capital do Sião. Contraria o retrato tudo quanto se diz: que eram pobres, maltrapilhos, analfabetos.
O centro da vida comunitária orbitava em torno dos padres e da elite local de homens de pulso que dirigiam o bandel, eles também líderes das irmandades responsáveis pelo controlo social e aplicação da justiça. O sentimento de pertença à comunidade era constantemente exercitado pela exigência de participação nas cerimónias religiosas do calendário católico. Aos domingos, missa com a presença de toda a população, seguida de procissão pelas ruas do bandel Durante a Quaresma realizavam-se penitências, os padres e irmãos pregavam e havia cânticos em que participavam as crianças do kampong. Por altura do Natal, preparava-se um presépio vivo que constituía atracção para os habitantes das aldeias vizinhas – Peguanos, Chineses e Japoneses – sobretudo os primeiros que, de tão impressionados, mandavam os seus filhos para a Missão dos Jesuítas. As confrarias responsabilizavam-se pela integração e assistência dos crentes. Em finais do século XVII havia quatro confrarias a operar no campo: a Confraria do Santíssimo Nome de Jesus, destinada aos homens livres – isto é, aos Phrai Luang – “aqueles que andam com traje e foro de Portugueses a que na Índia se chamam cristãos da terra”, a Confraria de Santo António, destinada a criados e escravos, a Confraria de Nossa Senhora da Conceição, para os “meninos de escola e doutrina”, ou seja, para os catecúmenos e ainda a Confraria de Nossa Senhora do Rosário que parece ter reunido as mais influentes pessoas da comunidade estava aberta a homens e mulheres. Seria desta confraria que nasceria o mais importante núcleo de dirigentes da comunidade no período da queda de Ayutthaya e transição para Thonburi e Bangkok. Sendo uma população pobre, não era contudo uma população privada dos rudimentos da educação. Para além da doutrina cristã, aos alunos da Missão jesuíta era ensinado a ler e escrever, ensinava-se-lhes aritmética e música e, aos mais assíduos e motivados seriam dados rudimentos de latim.
Sobre estes nossos portugueses do Sião antigo poderão os meus amigos ler em breve, lá para Novembro, quando sair o tal livro.