
Há dois mil anos, alguém perguntou democraticamente à turba que se manifestasse e escolhesse um dos condenados. Dessa escolha dependeria a vida de um e a morte de outro. A multidão escolheu um e entregou o Outro aos juízes da Lei. Por vezes, o simples facto de dar voz às pessoas não é, por si, indício de democracia, mas de concessão à visão dos homens da massa. Aliás, a história está cheia de votações democráticas liberticidas, tolas umas, perversas outras; todas erradas. Lembram-se de Sócrates e da sua condenação à morte ? Lembram-se do cerrado e expressivo voto popular em Hitler e Salvador Allende ? Lembram-se da Frente Popular em Espanha ? E de Chávez na Venezuela ? E Berlusconi em Itália ? É assim. Sem prejuízo da aceitação da regra democrática, mas com pesar pelo facto da cultura democrática e daquilo que esta encerra se confundir com votos comprados, suborno, manipulação, demagogia, há que aceitar o veredicto das urnas, mesmo quando um povo resolve votar em criminosos e gente absolutamente amoral; ou seja, quando um povo perde o respeito por si e se suicida.
As eleições que hoje se realizaram na Tailândia deram expressiva vitória ao Pheua Thai, ou seja, aos Vermelhos. O povo tailandês tem memória curta. Há um ano, esses Vermelhos pegaram fogo a Bangkok, calcaram todos os princípios elementares da cultura do diálogo e da tolerância - atributos da democracia - e prepararam um golpe de Estado com o apoio da criadagem da plutocracia. Falhada a arremetida violenta contra a ordem, escolheram o caminho longo, despolitizaram o discurso. Na frente vermelha há de tudo: ex-guerrilheiros comunistas, thaksinistas, anti-monárquicos, liberais que sonham com uma Tailândia de negócios e querem ali reproduzir uma nova Singapura, uma nova Coreia do Sul ou uma Dallas com prédios de vidro até às nuvens. Campeia, sobretudo, a confusão de planos e a absoluta ausência de educação política, de leitura e referências. Ouvir aquela gente discorrer é tão incómodo como assistir a um frente-a-frente entre Carmelinda Pereira e Eduardo Lourenço, um debate entre Bento XVI e uma testemunha de Jeová. Trata-se de gente impreparada e falha de formação teórica e técnica.
A Tailândia tinha que escolher entre Abhisit - um homem de Oxford, culto, ponderado, claro e sem mácula de corrupção - e uma fulana absolutamente insignificante que não consegue reunir duas ideias. Escolheu, naturalmente, o caminho fácil. Abhsit deu o que tinha e não tinha para retirar a Tailândia do exótico político e do terceiro-mundo. Combateu a crise financeira global, garantindo ao país 8% de crescimento económico anual, lançou mão a mil e uma iniciativas visando estimular a economia, fomentar o nascimento da sociedade civil, apoiar os mais desfavorecidos sem demagogia. Combateu, até, esse flagelo da corrupção que mina a governação desde há décadas, entregando à justiça ministros corruptos. Foi, sobretudo, um defensor leal e radical da instituição monárquica. Fiou-se, contudo, na sua tradição inglesa, ignorando que a Tailândia não é o Reino Unido. Tinha a combatê-lo as flores do mal da democracia: o caciquismo, o "discurso de taxista", o milenarismo, a impaciência das massas que querem queimar etapas e querem ser "ricas"; isto é, querem motos, cartões de crédito, comida de graça, transportes de graça, educação de graça, tudo de graça. Um combate de Abhisit, sem dúvida votado ao fracasso, pois o "homem da rua" julga que pode ser rico se vender o ouro dos museus e dos palácios, se se deitar para o lixo todas essas ninharias que não compreende e julga antiqualhas - para que serve o Budismo ? para que serve a cultura ? para que servem as Forças Armadas e as elites que transportam a memória do "nós" intemporal que são as sociedade ? - e quer dinheiro.
Conhecendo razoavelmente a história contemporânea tailandesa, julgamos que nada de novo trouxe esta eleição. Um governo Vermelho argamassado com as negociatas sujas do clã de Thaksin e os sonhos infantis dos descamisados - que continuarão descamisados - vai resultar em nova vaga de violência política e, claro, num golpe de Estado. O golpe não será amanhã ou no próximo mês. Será, talvez, dentro de um ou dois anos, quando esses governantes ad-hoc se atolarem uma vez mais, como no passado, numa espiral de roubo de propriedade pública e confundirem os seus negócios com o Bem-Comum. Abhisit e todas as pessoas minimamente esclarecidas sabiam desde há muito que a democracia é um caminho longo e sacrificado de aprimoramento, elevação das consciências e construção de uma cidadania feita de eleitores inacessíveis ao primeiro cacique que lhes entra porta-adentro oferecendo uma bicicleta, um aparelho de televisão ou crédito para consumir na loja da esquina. Os tailandeses quiseram o caminho fácil. Essa escolha condenou à morte a democracia tailandesa e o futuro do país será, não o da democracia, mas dos governos militares. Pelo amor que tenho pela Tailândia, só posso desejar que o futuro não seja tão sombrio como prevejo.
Há coisas que não gosto de aflorar, por respeito elementar e para evitar interpretações movidas pela má-fé. Hoje, não as vou esconder nem escamotear. Para minha grande desilusão, há democracias a duas-velocidades e a Tailândia é uma delas, tal como a África do Sul, o Brasil e até a Índia. A quadratura do círculo de fingir que é democrático um país onde 2/3 da população não tem a mínima informação, se deixa comprar e enganar e não está preparada para escolher, é responsável por estas coisas. Quem votou no Partido Democrático de Abhisit, fê-lo com absoluta consciência, informação e liberdade. A força do número, por si, não define a verdade. A generalidade dos thais que votaram vermelho não lê, não sabe nem se informa e limita-se a agir por impulsos sentimentais. Dizia-me uma tailandesa que votara nos vermelhos pelo facto da candidata ter uma boa pele, um sorriso branco e um cabelo excepcional. Não fazendo caricatura, assim é a visão do mundo que a maioria da população "vermelha" tem da vida política. É tudo acessório, é tudo lúdico.
Por vezes dou comigo a falar com altos quadros do Estado e até diplomatas thais e fico com a incómoda sensação que não compreendem o que lhes estou a dizer; isto é, quando os tento alertar para o problema da democracia a duas velocidades fazem um sorriso que não quer dizer nada e mudam abruptamente de conversa para abordar relevantes questões como o tempo, a última jantarada e o filme que está a dar brado. Por muitos séculos, os thais habituaram-se ser governados por uma selecta, educada e fina ordem palatina de príncipes e nobres. A alta sociedade thai ainda tem esses adereços de sofisticação. A monarquia mantém essa cultura de corte, a etiqueta grandiosa, a elaboração dos procedimentos e a beleza dos rituais que são o contrário da vaga de estupidez que varre a orbe. É um dique contra esta "modernidade" roncante que vai carcomendo tudo em benefício do ventre. A Tailândia, ao longo dos últimos 60 anos tentou o equilíbrio possível entre o passado e o presente da era americana. Se a monarquia for posta em causa, a Tailândia transforma-se, apenas, num lupanar (é para isso que lá está a maioria dos estrangeiros) e numa coutada para negociatas à Filipinas e à Vietname. As "novas elites" são um mal global, e são tão tailandesas como qualquer broker do Liechtenstein, da city nova-iorquina ou um corrector. Os tailandeses não são isso sob pena de perderem aquilo que os fez que não fossem uma colónia. São livres !
O povo tailandês é um povo excepcional, com um sentido profundo da sua especificidade e de uma bondade que ultrapassa largamente aquilo que encontramos no Ocidente. Que se salve do naufrágio da chamado globalização !